Texto: Caio do Valle Souza
Publicado originalmente na revista digital Calle2
A educação atravessa um momento crítico na América
Latina. Recentes propostas de reformas no setor têm despertado discussões
acaloradas, além de protestos – que, inclusive, resultaram em mortes – em
inúmeras localidades entre o Río Grande e a Tierra del Fuego. O Brasil não está
de fora, visto que o governo Michel Temer vem buscando impor a reestruturação
do ensino médio através de uma medida provisória já em trânsito no Congresso.
Há pontos em comum entre os projetos aventados em diferentes
países da região, como México e Argentina: a ampliação dos mecanismos
avaliadores de alunos e professores, a desarticulação da categoria docente e o
estabelecimento de um caráter terminal e técnico para o ensino médio.
É relevante observar, também, o interesse e a influência de
poderosos organismos econômicos internacionais, como o Banco Mundial e a OCDE
(Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico), na elaboração das
políticas públicas voltadas para a educação latino-americana, sempre com o
pretexto de ampliar a sua “eficiência”. Além disso, entidades privadas, às
vezes sob o manto de neutralidade das organizações não-governamentais, procuram
balizar ações estatais com o intuito de modificar currículos escolares e
metodologias de ensino conforme interesses e demandas empresariais.
Estudiosos da Educação ouvidos pela Calle2 argumentam
que, embora as investidas neoliberais já ocorram há algumas décadas na política
do continente, tem-se observado, nos últimos anos, uma ampliação dessas
diretrizes no que concerne ao segmento de ensino. O professor João Branco,
membro do Grupo de Pesquisa Poder Político, Educação e Lutas Sociais (GPEL) da
Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), vê nesse movimento
uma espécie de contrarrevolução, dado o seu forte caráter conservador. De
acordo com ele, existe um vínculo entre as reformas educacionais pautadas por
pressupostos do neoliberalismo e o modelo econômico de produção que tem se delineado,
ao redor do mundo, neste início de século.
As reformas educacionais, portanto, visam mais a “formar”
mão de obra adaptada para o mercado do que a expandir a qualidade da educação.
“Podemos enxergar um conjunto amplo de ações, uma verdadeira
ofensiva, para impor essa contrarreforma. A primeira é encaixar o discurso da
qualidade educacional, criador do consenso de que o sistema de ensino é fraco,
ineficiente, incapaz, com resultados pífios”, explica o pesquisador. Em seguida
à consolidação desse discurso, prossegue Branco, mobiliza-se um “grande
exército de técnicos e especialistas em educação” para atestar, com dados e
medição de resultados, “o fracasso da comunidade escolar”. “Empilhando
documentos e sistemas de diagnóstico padronizados, criam a ‘evidência’ de que é
necessário mudar; ou seja, a avaliação da escola, dos professores e estudantes
se torna uma constante.”
Mecanismos de aferição do “desempenho” de alunos,
professores, diretores e escolas pipocaram em muitos países latino-americanos,
seja em nível regional ou nacional. No primeiro caso, um exemplo é o Saresp
(Sistema de Avaliação de Rendimento Escolar do Estado de São Paulo), instituído
pelo governo de São Paulo vinte anos atrás, e que é usado para calcular o
pagamento ou não de bônus aos servidores da educação a cada ano. Já em âmbito
federal, pode-se destacar, na Argentina, a prova Aprender, criada há alguns
meses pelo presidente Mauricio Macri, que até montou uma Secretaria de
Avaliação Educativa com o objetivo de “medir a aprendizagem” dos estudantes da
educação básica no país.
Provas dessa natureza levam ao estabelecimento de índices e
metas que, além de estimular certa competitividade mercadológica entre escolas
e profissionais do ensino, servem a propósitos políticos e econômicos mais obscuros.
Tanto é assim que, quando, em 2015, o governador paulista, Geraldo Alckmin,
revelou o desejo de fechar 94 escolas no Estado, alguns defensores da proposta
utilizaram o desempenho “ruim” de parte dessas unidades no ranking estadual
como argumento para a sua desativação.
Um documento produzido pelo Banco Mundial em 2014, e
significativamente intitulado Professores excelentes: como melhorar a
aprendizagem dos estudantes na América Latina e no Caribe, constitui um indício
de como tais avaliações podem ser usadas como meio de convencimento para
alterações estruturais nos sistemas de ensino do continente. A partir dos
resultados latino-americanos no PISA (sigla em inglês para Avaliação
Internacional de Estudantes), o organismo sugere, entre outras coisas, medidas
para ampliar a “eficácia” dos professores em sala de aula. Segundo o Banco
Mundial, o magistério na região atrai profissionais menos capacitados do que em
outras partes do mundo. Entretanto, para o pesquisador João Branco, da USP, o
órgão despreza “as diferentes realidades de cada país, sua história, sua
organização social, sua diversidade, a cultura, os diferentes contextos onde se
ensina e se aprende”.
Como ‘superar’ os sindicatos
O mesmo manual do Banco Mundial inclui um capítulo dedicado
a estimular os governantes a “superar” o intermédio dos sindicatos de
professores do ensino básico – mas tudo de modo a evitar conflitos diretos. Uma
saída está nos planos de avaliação voluntária, por exemplo. Conforme explicita
o Banco Mundial, o “maior desafio para elevar a qualidade dos professores não é
fiscal nem técnico, mas político, porque os sindicatos dos professores em todos
os países da América Latina são grandes e politicamente ativos”.
Ou seja, para o respeitado órgão econômico, melhor estariam
as entidades representativas dos docentes latino-americanos caso nunca se
mobilizassem no xadrez político, algo que contraria os próprios fundamentos da
democracia liberal que a instituição afirma defender.
Aliás, interessante constatar que, em questões de educação,
o Banco Mundial considera “ideológico” apenas o que não corrobora a sua própria
linha de pensamento e conduta. Em outro documento, Achieving world-class
education in Brazil, publicado em 2010, a instituição defende que as faculdades
de educação brasileiras passem a dar, na formação de professores, maior ênfase
aos conteúdos (de matemática, ciências e linguagem) em detrimento do “atual
predomínio de filosofia e ideologia”. (Qualquer semelhança com a medida
provisória do ensino médio propugnada pelo governo Temer, que enfatiza essas
três grandes áreas do conhecimento e relativiza a importância de sociologia e
filosofia no currículo escolar, pode não ser mera coincidência.)
No México, a reforma educacional levada a cabo desde 2012
pelo presidente Enrique Peña Nieto enfrenta a resistência da CNTE (em espanhol,
Coordenação Nacional de Trabalhadores da Educação, uma dissidência interna do
sindicato da categoria). Contudo, segundo Héctor Rodolfo Andrade López,
pesquisador da UNAM (Universidad Nacional Autónoma de México), o governo,
através de mudanças legais, deu um passo no sentido de individualizar a ação
dos professores, levando a uma perda do poder de representação sindical. O
artigo terceiro da Constituição, por exemplo, passou a contemplar o Sistema Nacional
para a Avaliação da Educação após uma canetada do presidente. “Isto rompe a
força do sindicato e institucionaliza uma avaliação para controlar e despedir
os professores”, destaca Andrade, lembrando que o processo de avaliação
padronizado ignora diferenças fundamentais em um país multicultural e
multilinguístico como o México. Ainda de acordo com o estudioso, as diretrizes
reformistas têm, acima de tudo, um cunho laboral: “Encontraram um jeito de
dividir e debilitar a resistência dos professores”.
A reforma foi precedida por um documento fabricado em 2010
pela OCDE, à qual o México é associado, batizado de Acuerdo de cooperación
México-OCDE para mejorar la calidad de la educación de las escuelas mexicanas.
Por outra “coincidência”, o relatório pontifica justamente que o “México
necessita com urgência de um sistema de avaliação de professores baseado em
padrões” e que os “docentes que apresentarem um baixo desempenho de modo
permanente devem ser excluídos do sistema educacional”.
Resistências
Não é à toa que a resistência à implantação da reforma
encontre terreno fértil em Estados de grande população indígena, como Oaxaca,
ao sul do Distrito Federal. Foi ali que, em junho deste ano, ao menos seis
manifestantes contra as novas políticas educacionais morreram durante uma
repressão violenta da polícia. As pessoas protestavam, fechando rodovias, após
a prisão de dois líderes da CNTE. Entre os participantes do ato havia
professores e pais de alunos.
A internet também constitui um meio importante para a mobilização
contra as investidas da administração Peña Nieto na área do ensino. Quando, em
2014, a diretoria do Instituto Politécnico Nacional – órgão federal de
ensino superior – procurou mudar o currículo para torná-lo técnico, os
estudantes conseguiram inundar as redes sociais com a hashtag TodosSomosPolitécnico,
obtendo ampla visibilidade para a causa e a consequente revogação da medida. “O
movimento responde a um processo de ‘tecnificação’ e barateamento da mão de
obra de qualidade”, afirma Andrade, da UNAM.
Este caso, por sinal, ilustra outro ponto nevrálgico das
reformas educacionais que vêm sendo perpetradas na América Latina: a
transformação do ensino médio – antigo segundo grau ou colegial no Brasil – em
etapa técnica e terminal para boa parte dos alunos, especialmente os mais
pobres. O professor Eduardo Donizeti Girotto, do Departamento de Geografia da
USP, explica que, no caso brasileiro, a medida provisória do governo Temer para
mudar o secundário, ao dar ênfase ao ensino técnico, tem o objetivo de ampliar
parcerias públicas com entes privados.
“Vale ressaltar que um dia após o anúncio da MP [medida
provisória], o secretário estadual de Educação de São Paulo, em entrevista ao Estadão,
anunciou que cumpriria a MP entregando o ensino técnico para o Sistema S [como
o Senai e o Senac, geridos pela indústria e pelo comércio].” Ainda de
acordo com Girotto, organizações do terceiro setor criadas por grandes grupos
empresariais, entre as quais, no Brasil, o Todos pela Educação, o Instituto
Lemann, o Instituto Inspirare e a Fundação Roberto Marinho, “têm se tornado os
protagonistas destas reformas gerenciais, pautando claramente os governos para
que eles realizem as reformas a partir das concepções de educação e sociedade
que tais grupos defendem e que têm como foco a lógica da eficiência
educacional”.
Girotto cita um caso bastante particular, e que envolve um
dos pontos mais polêmicos da reforma de Temer: o ingresso de pessoas sem
licenciatura no ensino público. Um relatório financiado em 2006 por um think
tank do liberalismo norte-americano, a Brookings Institution, composta por
assessores do alto escalão do Partido Democrata, recomenda que “remover as
barreiras para a entrada no magistério” permitiria que “muitas pessoas
interessadas no ensino como segunda carreira (ou uma entre muitas) se tornem
professores”. Batizado de The Hamilton Project, o texto se direcionava a
formuladores de políticas dos Estados Unidos, mas sua influência transcendeu
fronteiras e, conforme Girotto, “é a concepção que sustenta a ideia de notório
saber apresentada na MP 746”.
O estudioso também pontua que instituições financeiras como
o Banco Mundial costumam receitar a diminuição relativa dos custos do ensino,
por meio do aumento da eficiência de professores e alunos sem contrapartidas
orçamentárias. A reforma do ensino estimulada pelo governo Macri na Argentina,
por exemplo, quer ampliar a produtividade futura do setor mantendo os mesmos
atuais 6% do PIB de investimento em Educação. É o que transparece da Declaración
de Purmamarca, assinada neste ano pelo ministro da Educação, Esteban Bullrich,
estipulando os fundamentos do novo ensino naquele país.
Tanto lá quanto no México e no Brasil o governo central
enfrenta oposição séria e organizada de diversos setores. Em solo brasileiro,
centenas de escolas e instituições de ensino têm sido ocupadas por estudantes
contra a reforma do ensino médio e a PEC que congela os gastos públicos por
vinte anos, e que deve afetar áreas como a Educação. Eles argumentam que as
alterações não foram profundamente discutidas com a sociedade. Na Argentina,
associações de docentes se mobilizam em marchas contra a administração Macri.
Citado como bom exemplo a ser seguido nas cartilhas do Banco
Mundial, o Chile, onde a maior parte do ensino é privatizada – processo
aprofundado na ditadura de Augusto Pinochet –, professores que questionam as
metodologias rígidas de avaliação reclamam de perseguições, entre as quais o
aumento da sua carga horária de trabalho. Porém, na esteira de mobilizações de
massa como a Revolta dos Pinguins, de 2006, um movimento de articulação dos
docentes vem emergindo em lugares como Antofagasta, no norte do país. Ali,
surgiu a rede “Profesores Indignados”, que pretende ampliar a participação das
bases nas políticas de ensino.
O professor João Branco, da USP, lembra que as manifestações
não são pura e simplesmente contra qualquer tipo de mudanças nas estruturas de
ensino, e sim a maneira como elas foram gestadas e têm sido aplicadas.
“São autoritárias, excludentes, padronizadas e desprezam o
debate público, posto que são definidas em gabinetes e longe dos espaços
escolares.”
O estudioso admite que há muitos problemas do cotidiano
escolar a serem resolvidos. “Muitos movimentos pedagógicos incluem a avaliação
do ensino em suas bandeiras, mas reivindicando a si mesmos a tarefa de avaliar,
ou seja, de um modo coletivo, respeitando os contextos locais de ensino e
aprendizagem, seus conteúdos educativos. O problema aqui é: o que se avalia
nesses exames? Quem define, quem padroniza? Como ignorar a diversidade e os
diferentes contextos? O que é ‘ineficiente’? A quais interesses atende?”
Texto: Caio do Valle Souza
Publicado originalmente na revista digital Calle2
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